quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O pai da Rapunzel

Sei que ninguém quer saber mais sobre aquela história de aborto, etecétera e tal. Pois, se nem a Angélica, que é a ombudsman do blog, quis comentar e polemizar, o melhor que eu poderia fazer é dar por encerrado o assunto.

Concordo: ponto final e não se fala mais nisso. Mas acho importante voltar à questão que, para mim e também para Mi, a nossa história ilustra: o egoísmo que o pai expressa em querer discutir racionalmente o aborto do próprio filho é, na verdade, uma reação inconsciente ao sentimento de exclusão que ele vivencia com a gravidez?

Não à toa usei a palavra “inconsciente” diretamente relacionada à psicanálise. Porque para tratar do tema “exclusão paterna” recorro a um dos capítulos do livro Fadas no Divã: psicanálise nas Histórias Infantis, escrito por Diana e Mário Corso (Melina, se você já não tem, compre!). O título do Capítulo IV é “A mãe possessiva” e nele são analisados dois contos de fadas, em especial: Rapunzel e A fada da represa do moinho. Nem de longe estou, de antemão, sugerindo que a culpa pelo egoísmo do pai é da mãe possessiva. Devagar com o andor.

Provavelmente se tivesse falado desse livro — primoroso, diga-se de passagem, tanto pela qualidade do texto quanto pelo requinte da edição — numa postagem anterior àquela do aborto desconfio que o assunto não pareceria tão desagradável até para os mais sensíveis . Só não o fiz porque naquela ocasião ainda não tinha lido o referido capítulo.

Claro, todo mundo se lembra que a estória de Rapunzel tem início quando ela ainda não tinha tranças e muito menos esse nome. Começa assim: sua mãe grávida obriga seu pai a furtar os raponços da vizinha bruxa para saciar seu desejo.

E lá foi o pai, na calada da noite, tentar assaltar a horta da vizinha. Então é flagrado com os raponços na mão (vale dizer que raponço não é sinônimo de rabanete, embora a maioria das traduções disponíveis cometa esse erro). A bruxa malvada deixa que o pai leve os raponços desde que, em troca, entregue a criança logo depois do nascimento.

Dito e feito. A bruxa recolhe a menina e dá a ela o nome de Rapunzel, em homenagem aos raponços que lhe garantiram uma filha (se fossem rabanetes chamaria “Rabunzel”).

O resto da estória todo mundo se recorda. Ou não? De qualquer forma, não tem nenhuma relevância para a questão levantada; que de um jeito mais direto poderia ser assim reescrita: por que diabos o pai de Rapunzel promete e cumpre a promessa de entregá-la?

Como fiz questão de apontar no terceiro parágrafo, o pai não troca sua filha por um maço de raponço apenas porque aceita se submeter primeiro ao desejo de sua mulher e depois ao desejo da bruxa (outra mulher).

A explicação excelente e estimulante de Mario e Diana Corso é a seguinte:

            Quando um casal é invadido por um terceiro elemento, o recém-nascido, não é incomum que o pai vivencie uma espécie de mágoa, que muitas vezes começa no próprio curso da gestação. A aparência de plenitude da grávida, algumas vezes associada à recusa de uma vida sexual mais animada, deixa o homem com uma sensação de exclusão. O nascimento não melhora as coisas: o recém-nascido povoa a casa com seus objetos, seus gritos e seu cheiro, incluindo, por vezes, a presença de estranhos na casa. A nova mãe passa o dia seminua, mas dessa vez não há nenhum apelo erótico, apenas uma fonte de leite. Além disso, exausta, a mãe adormecerá com o nenê sempre que tiver oportunidade.
            Para o homem, há alguns caminhos possíveis: observará todo esse circo a uma distância prudente, orgulhoso da paternidade, mas estranho a seus rituais, ou é possível que se identifique com a mulher, compartilhando com ela os cuidados maternos primários. De qualquer uma dessas posições, precisará (ou sentirá necessidade de) intervir, reconstruindo a vida erótica do casal, lembrando à mulher que ainda é desejável, tirando-a dos circuitos obsessivos em que ela entra com seu bebê. Por mais envolvido que esteja com mamadeiras e fraldas, o pai tende a oferecer alguma exterioridade que areja a relação com o bebê. As mães principiantes entram em pensamentos recorrentes e culposos, em que se acusam das mais variadas insuficiências, alarmam-se com qualquer coisa e temem a cada segundo pela vida do bebê. Nada como um pai para relativizar essas pequenas, mas sofridas loucuras. Porém, nem sempre o homem está pronto para exercer tal função. Ele pode também entrar numa disputa com o bebê, colocando-se na mesma posição: chorão e exigente, ou ainda terá o recurso de desistir, deixando sua mulher entregue ao papel da bruxa, vivendo exclusivamente para o bebê. Muitas vezes, esta é a ocasião para providenciar uma relação extraconjugal, fazendo uma conveniente separação entre a mãe e a mulher desejada, que ele não suporta vê-las fundida numa mesma pessoa.


Bem na mosca, né?

A seqüela do guerreiro

Dói na gente, só de lembrar o quanto o João Pedro batalhou para viver.
Mas, ao mesmo tempo, me encho de orgulho por ele ter vencido.
Por isso, acho que não vou nem mais dizer que a bolinha em seu ombro esquerdo é uma seqüela de guerra.
Daqui em diante vou lhe falar que é, sim, sua primeira medalha de guerreiro.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O parto do João Pedro

E depois de 9 meses e dum parto de 12 horas, o João Pedro finalmente nasceu.
Foi tão dura sua luta pela vida que desmaiou de exaustão. O médico teve de puxá-lo, numa espécie de fórceps manual que quebrou sua clavícula (só soubemos disso meses depois quando identificamos o calo ósseo no ombro).

Ele não chorou. E nós vivemos segundos, minutos de completo desespero.

Tem uma foto que minha cunhada, Ane, tirou no momento em que o médico obstetra segura o João desmaiado: a Mi está cócoras — assim aconteceu a parte expulsiva do parto natural — eu estou atrás dela fazendo a sustentação, ela toca o corpinho inerte do João e com a voz trêmula e o rosto crispado pelo medo pergunta ao médico “por que ele não chora?”.

Das costas da Emiliane, já com as pernas trêmulas pela fadiga, quase desabei ao sentir a agonia e o terror em sua voz.

A foto registra esse momento exato. E ainda hoje, quando tento ver a foto, meu coração se aperta com a lembrança da lembrança do pior.

No primeiro minuto de vida o João Pedro ganhou nota 3 na velha escala de Apgar, que significa asfixia moderada. Mas logo reagiu, porque ele realmente nasceu guerreiro, e com o auxílio do médico-pediatra(?), que passava pela sala de parto, respirou firme e forte.

Foi então acomodado ao lado da Mi, porque calor de mãe é mais pura energia que existe.

Aí eu me aproximei, chamei seu nome e ele me olhou nos olhos como ninguém nunca havia me olhado. Esta é a foto, e a lembrança mais feliz que trago do dia 18 de dezembro de 2003:


Dizem que esse olhar que o recém nascido lança sobre o pai é uma aquisição evolutiva dos seres humanos. Ou melhor, ao longo dos séculos os bebês foram aprendendo a encarar seus pais e a tocá-los profundamente com os olhos da inocência porque durante anos os machos devoravam ou simplesmente descartavam suas crias.

Talvez o João Pedro ainda estivesse preocupado com aquela conversa esquisita sobre aborto.

Conto isso tudo porque quando as pessoas ficam impressionadas por saber que o Antônio, nosso segundo filho, nasceu em casa pelas minhas mãos e pela coragem da Emiliane, nem imaginam que o parto do João Pedro foi o extremo oposto e, portanto, tão significativo quanto.

Embora as “conversas” que mantivemos na gravidez tenham sido fundamentais para que eu me reconhecesse como pai, foi o nascimento do João que uniu definitivamente minha vida à dele. Além do mais, depois da foto tive de acompanhá-lo à UTI neonatal porque o pediatra me disse que “se o bebê não ficasse vermelhinho nas próximas horas, ele teria sérios problemas neurológicos” (dá pra entender porque tenho minhas dúvidas se esse rinoceronte-de-branco era mesmo pediatra?). Como não tinha nenhum outro bebê no berçário pude ficar ao seu lado até que ele ficasse corado: foram quatro horas de uma longa conversa sobre o amor e sobre a vida. E antes do dia acabar ele já estava no quarto com sua mãe e seu pai. São e salvo.

Para nossa alegria o João Pedro nunca teve cólicas, nunca apresentou problemas neurológicos decorrentes da asfixia e sempre — que ficava inquieto — sossegava ao ouvir minha voz.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Do aborto


Na postagem anterior contei que o João Pedro me ensinou como as crianças nascem das estrelas. Disse também que quase “morro eletrocutado com [o choque da] notícia da gravidez”. Levei um baque tão forte que considerei — e pior — discuti seriamente com a Mi a opção pelo aborto. Ia contar essa nossa história real, sem metáforas, mais dia menos dia numa Intra-uterinas. E provavelmente para muitos que me acompanham por aqui o tema passaria despercebido, ficando escondido entre tantas “memórias de fora pra dentro da barriga”.
Resolvi sublinhar o aborto. Ou melhor, sublinhar a importância que a consideração dessa hipótese — interromper a gestação de nosso primeiro filho — teve na afirmação de minha condição de pai, porque estou indignado com a hipocrisia e a covardia demonstrada pelos candidatos (e suas campanhas) a presidente do Brasil. Como o debate político pode dissimuladamente se recusar a enfrentar a questão do aborto? De que serve a Política senão para nos proporcionar a discussão sobre projetos de vida em comum e sobre o que é relevante para todos e cada um de nós? Sinceramente, não sei. Mas talvez essa Política — assim com “P” maiúsculo — dependa mesmo dessa esfera pública livre de constrangimentos que se forma nos blogs, nas ruas, nas casas, enfim, com nossa própria opinião pública.

Olha eu aqui fazendo discurso... Deve ser saudades de Brasília... É melhor ir logo para o texto.


Ainda bem que você esperou sentado no conforto do útero de sua mãe por esta nossa conversa.
            Apesar de que nem mesmo a certeza de seu bem estar pode minimizar meu constrangimento em tê-lo feito esperar tanto.
            Mas, de alguma forma, este atraso pode nos ser de grande valia, já que o motivo da demora é nada mais nada menos do que o tema da conversa prometida.
            Assim, se tivesse escrito no dia 11 de junho [de 2003] como prometido, teria de tratar com hipóteses e conjecturas que — como você já sabe — intensificam o grau de abstração de nossos papos e dificultam nossa comunicação.
            Portanto, dos males o menor.
            A razão do atraso é a grande quantidade de atividades (profissionais e intelectuais, não sei se convém dividi-las desta forma) que seu pai está desenvolvendo há quase três meses. Na verdade, a grande quantidade de trabalho tem exigido a quase totalidade de meu tempo. Sem qualquer exagero (digo isso para que você fique avisado que em nossa sociedade as pessoas valorizam tanto o trabalho que gostam de dizer que trabalham muito, gostam de parecer ocupadas e sem tempo).
            Meu tempo está quase completamente tomado por quatro atividades:
a)      a de professor de Direito numa faculdade aqui de Brasília;
b)      a de Coordenador Acadêmico de Pesquisa na mesma faculdade;
c)      a de assessor jurídico do Departamento de Política do Ensino Superior do MEC;
d)      por fim, a de pesquisador (ou mestrando) na faculdade de Direito da Universidade de Brasília: e para você poder mensurar a importância deste Mestrado para mim e também para sua mãe saiba que ele ensejou nossa mudança de Belo Horizonte/Minas Gerais para Brasília/Distrito Federal em março de 2001. Largamos empregos e amigos em BH, onde me graduei e vivi por oito anos, para realizar este “sonho” do Mestrado. Depois que você decidiu viver entre nós, a pesquisa que realizo é nossa prioridade número 2.

            Bom, agora que você conhece grande parte do que faço e com que trabalho (deixei de fora os cursos ou palestras que dou esporadicamente em cursos de graduação e pós-graduação latu senso dentre outros “bicos” que nos rendem um dinheirinho extra, porém significativo), talvez possa entender o motivo pelo qual atrasei e também pelo qual, via de regra, demorarei a contar tudo o que penso que você deve saber antes mesmo de nascer.

            Talvez, agora, você possa entender a razão pela qual discuti com sua mãe quando recebi a notícia de sua chegada...
            Antes de qualquer outra palavra saiba que das duas conversas que reputo mais difíceis para ter contigo, a que faremos agora — porque já não pode mais ser adiada — é a mais dolorida.
            Desde o ano passado, mais precisamente dezembro de 2002, vínhamos eu e sua mãe conversando seriamente sobre filhos. Sua mãe dizia que nosso casamento e nosso amor estava suficientemente maduro e consolidado para acolher uma criança. Eu não discordava da solidez de nosso amor, mas advogava a necessidade de concluir o Mestrado e ter casa própria para então encomendar nenê.
            Ela acabou concordando comigo e assim reajustamos nossos planos, refizemos nossas contas e partimos a procura de um apartamento em Brasília que pudéssemos comprar. Vivemos quase dois meses dos classificados para imobiliária, da imobiliária para o corretor, do corretor para o imóvel e de novo para os classificados. Ao fim de fevereiro deste ano, depois de visitar muito apartamento do tamanho de nossa capacidade de compra, decidimos adiar um pouco mais a execução deste plano, cientes de que com isso adiávamos a sua concepção. É claro que o adiamento não se fez sem o descontentamento de sua mãe.
            De qualquer forma, combinamos que casa e filhos só em 2004 quando então teria concluído o Mestrado e decidido aonde faria o Doutorado. Isto é, se o Doutorado tivesse de ser realizado fora de Brasília, Belo Horizonte quem sabe, seria mais conveniente comprar casa na cidade em que fixaríamos residência pelos quatro anos do curso.
            Assim, continuamos tocando nossas vidas na mesma toada, bem conforme o planejado. Até que em março tanto eu quanto sua mãe recebemos propostas de emprego irrecusáveis: ela foi convidada para trabalhar como assistente de uma professora-coordenadora de pós-graduação em Odontopediatria, curso no qual sua mãe se especializou, e eu fui convocado pelo meu orientador a assessorá-lo no MEC.
            Feitas as contas, aceitamos ambos os convites com a consciência de que as novas atividades provocariam uma redução drástica no tempo que tínhamos um para o outro, mas, em compensação, aumentaria em muito nossa renda mensal permitindo juntar o dinheiro necessário para compra da casa.
            Eis então que numa segunda-feira pela manhã, no fim de março, uma ou duas semanas após darmos início aos novos trabalhos, sua mãe — bastante preocupada com o atraso da menstruação — decide ir à farmácia para comprar um destes testes de gravidez pela urina. Como se fosse hoje, me lembro que ela foi ao banheiro, fez o teste e voltou para cama me pedindo que fosse ver o resultado.
            Lembro-me da cena, mas não me recordo exatamente o que senti. Sei que mantive o controle porque, de alguma forma, apostava minhas fichas na eficácia duvidosa do teste.
            No mesmo dia decidimos fazer o exame de sangue; este sim, na minha cabeça, poderia ser considerado um teste de verdade.
            Ficaria pronto às três da tarde, hora em que sua mãe estaria trabalhando no Gama, o que me obrigava a ir buscar o resultado.
            Do momento em que estacionei o carro, todos os atos que relacionarei a seguir parecem ter se passado em câmera lenta, muitíssimo lenta: bati a porta, chequei o endereço e o nome da clínica que trazia anotados num papel guardado no bolso de minha camisa, caminhei alguns passos até a entrada do edifício, cruzei com algumas pessoas, desci não mais que dez degraus de uma escada, entrei pela porta de vidro da clínica, sentei-me diante da atendente, perguntei pelo exame de Emiliane A. Romão, entreguei o canhoto, a atendente se levantou caminhando a uma sala anexa, olhei para a recepção vazia, fixei meu olhar no monitor de tv ligado mas a esta altura já não via nada.
            Só fui abrir o exame quando estava dentro do carro.
            Um tanto quanto extasiado, liguei o carro e toquei automaticamente paro o Gama ao encontro de sua mãe.
            Conforme avançava pela estrada fui sendo tomado por uma alegria imensa a ponto de entrar no consultório de sua mãe e surpreendê-la com um abraço afetuoso e feliz. Nós nos beijamos, conversamos um pouco, choramos e ficamos alguns minutos em silêncio (algumas situações na vida são tão abundantes de significados que faltam palavras).
            Com a certeza de que deixava sua mãe tranqüila, peguei o caminho de volta.
            Foi na volta para o trabalho que as dúvidas foram me assaltando e uma frustração profunda tomou conta de mim.
            À noite esperando encontrar-me em casa com sorriso nos lábios e flores na mesa, sua mãe deparou-se com um homem confuso, triste e fragilizado.

            Hoje, passados mais de três meses deste episódio, sou capaz de entender e talvez explicar a razão de minha confusão, de minha tristeza e de minha sensação de vulnerabilidade.
            Não tinha nada a ver com você ou com a notícia de que você se encontrava a caminho. A idéia pura e simples ainda agora me assusta, mas de modo algum me entristece. Por isso tenho certeza que a frustração deveu-se à minha péssima percepção do contexto em que você nasceria.
            Enquanto dirigia de volta para o trabalho ia me deixando levar por uma visão ruim do mundo: só conseguia pensar na violência avassaladora das cidades brasileiras, na degradação acelerada dos recursos naturais, e, sobretudo, pensava com tristeza no pouco tempo que teria para me envolver contigo durante sua gestação.
            Lembre-se que afirmei acima ter desejado por muitos anos ser seu pai. Mas aí quando me vi a oito meses de seu nascimento e sem tempo para dedicar-me, como imaginei, à preparação de sua vida, fiquei muito frustrado.
            Foi isso o que eu disse à sua mãe; disse outros tantas palavras duras, rudes e ofensivas a ela ¾ como deslealdade, irresponsabilidade, separação e até interrupção (de fato a palavra dita foi “aborto”; hoje é quase impossível escrevê-la) —, mas o que a fez chorar mais profundamente, tenho certeza, foi minha frustração.
            À noite do dia em tivemos a confirmação da gravidez sua mãe e eu conversamos longamente sobre todas as implicações de sua chegada. Em algumas horas partilhamos inúmeras sensações de amor e medo, de alegria e ansiedade, de excitação e tristeza... Quando digo “sentimos”, também penso em você.
            Talvez você não tenha conseguido discernir, naquele dia, se falávamos a língua do amor ou não. Também nós não sabíamos, tudo girava muito depressa para que pudéssemos saber alguma coisa como gostaríamos de saber. Muito provavelmente cada um de nós três tenha se sentido desamparado naquele dia.
            Na minha cabeça havia se armado uma “sinuca de bico”, isto é, uma situação de difícil solução que me conduzia irremediavelmente à frustração: sabia que deveria continuar trabalhando muito para poder prover as condições matérias necessárias ao seu nascimento, mas se eu continuasse trabalhando muito sabia que não teria tempo para ser seu pai.
            Desde o primeiro momento, embora eu não pudesse percebê-lo como uma grande alegria porque sentia a imensa responsabilidade que sua chegada acarretava (devo lhe dizer que talvez seja esta uma característica marcante em seu pai: enquanto outras pessoas costumam comemorar situações que impõem mudanças para melhor, eu inevitavelmente me preocupo e dimensiono as responsabilidades e as obrigações decorrentes), desde o instante em que nos certificamos de sua gestação a palavra “prioridade” deixou de fazer plural. Ou seja, prioritariamente só existe você.
            Por isso vivi, até poucas semanas atrás, este pequeno drama, aquela sinuca.
            Não sei exatamente quando consegui superá-lo, porque comecei espontânea e intuitivamente a fazê-lo. Mas hoje creio ser capaz de explicar precisamente o quê deflagrou este esforço de superação de meu drama pessoal e como o fiz. Noutras palavras: vou lhe contar como o exercício da paternidade (ou melhor, o que eu entendo por paternidade) tem me feito e me preparado para ser seu pai — acho que vale a pena falar um pouco sobre tudo isso não apenas para relatar uma importante conquista, mas também para registrar os percalços e os desvios do caminho que decidi percorrer ao seu encontro (vivemos numa sociedade machista, isto você já sabe; a novidade é que as restrições e os constrangimentos de uma sociedade com esta “marca” atingem também os homens: como gestar e parir são considerados obrigações femininas, não há informações e orientações dirigidas à participação dos pais; e quando existem, somos tratados como coadjuvantes ou como acessórios da relação mãe-filho); e, para minha felicidade, caminho de mãos dadas com sua mãe.
            Voltando ao o quê e ao como, após muito estranhamento (a que chamei de frustração), percebi que eu precisava concebê-lo, interiorizá-lo, para então me sentir a vontade para preparar sua chegada. Assim entendi que necessitava conceber sua vida para planejar sua vinda.
            Pode parecer confuso falar de sua concepção com a gravidez em curso, pois, a rigor, você foi concebido a partir do instante em que o espermatozóide de seu pai encontrou-se com o óvulo de sua mãe no interior do corpo dela.
            Todavia, a partir deste instante bioquímico, deste encontro de gametas, apenas sua mãe pode experimentar naturalmente a concepção de sua vida, porque tudo nela começa a se modificar para acolhê-lo e desenvolvê-lo ao longo de nove meses. Esta é ordem natural das coisas: primeiro os bebês são concebidos e depois tudo começa a se arranjar para sua chegada.
            Mas para que esta “ordem” possa ser natural também para o pai, os casais costumam iniciar a concepção de seu bebê muito antes do encontro genético: começam pelo planejamento intelectual, isto é, concepção mental de seus filhos. Por isso, pode-se afirmar que mais do que a formação do zigoto, a concepção exige um encontro de idéias, entre pai e mãe.
            Sua mãe e eu vimos há anos pensando e concebendo seu nascimento. E isto acontece mais ou menos assim: aprofundamos nosso amor vivenciando juntos cada felicidade e cada infelicidade, falamos muito da educação que recebemos de nossos pais, avaliamos, criticamos e tentamos corrigir nossas atitudes ruins, trabalhamos para acumular recursos que não serão gastos por nós, enfim, passamos a pensar e planejar a vida para três pessoas. Creio que, com algumas variações, os casais que se amam assim concebem seus filhos.
            Como todo planejamento, a chegada dos filhos exige a definição de um cronograma. Ou seja, decisões sobre o que deve acontecer a cada mês ou a cada dia na vida do casal para que uma terceira pessoa possa nela ser acolhida. Há casos em que o tempo necessário para ir da concepção à execução leva três, quatro anos. No nosso cronograma levaria dois: tendo começado em 2002 quando nos sentimos seguros no casamento, maduros no amor e estáveis na profissão concluir-se-ia em dezembro de 2004. Talvez eu esteja sendo muito metódico — nada estranho a um professor de metodologia — e lhe ofereça uma impressão irreal dos acontecimentos; é claro, que na prática tudo se passa de forma pouco ou nada organizada.
            O fato é que você suprimiu um ano de nosso cronograma ao decidir nascer em dezembro deste ano. Bom, hoje desconfio que no calendário de sua mãe você já deveria ter chegado; mas isso fica para ela lhe contar...
            Aí, vi-me atropelado pelo seu tempo e obrigado a ajustar-me à sua ordem natural das coisas (abro aqui um parênteses para lhe confessar que esta petulância, esta sua prepotência de chegar antes que nós conscientemente lhe convidássemos a vir, muito me agradou; apesar de tudo, pensava eu nas primeiras semanas de gravidez, trata-se de uma criança com personalidade e com enorme capacidade de decisão).
            Mas, como eu dizia acima, entendi que a sua subversão da “minha ordem natural” exigiria de minha parte um esforço célere e, nem por isso menos dotado de paixão, de conclusão de meu próprio processo mental de concepção. Dizem que esta necessidade de racionalização é tipicamente masculina; não concordo. Acho que, ostentando essa afirmação, muita mulher que se diz emancipada acaba por se aprisionar nos limites morfológicos e culturais de seu próprio gênero. Admito que diante da gravidez é o homem quem mais necessita fazer uso da razão para se aproximar da experiência naturalmente sensível na qual a mulher se encontra plenamente envolvida.
            E, então, percebida a necessidade de concepção, restava responder a seguinte pergunta: como fazê-lo?
            Mais uma vez procurei quem me oferecesse pistas e experiências. “Um livro pelo amor de Deus!”. Nada encontrei.
Daí que pensei: vou começar a escrever para o bebê. Ou melhor, vou começar a conversar com você, assim, por escrito. Imediatamente fui tomado pela força da comunicação sincera entre pessoas que se amam e se desejam.
            Minha nossa, como não havia percebido antes que apenas minha crença no livre exercício da comunicação partilhada poderia nos aproximar, poderia realizar nossa concepção.
            Sim, nossa concepção! Pois não seria possível concebê-lo como filho sem, ao mesmo tempo, conceber-me como pai. Escrevendo pude entender tudo mais: precisava dialogar contigo sem a mediação de sua mãe e, portanto, sem a obrigação do contato com a barriga dela, precisava torna-me capaz de ser seu pai sem renunciar à minha autonomia como sujeito, como homem.
            Desta forma, sigo há mais de um mês exercendo a paternidade e, definitivamente, me preparando — lado a lado com sua mãe — para você.
            Hoje, com muita felicidade, posso lhe dizer que dou por concluída nossa concepção: sou seu pai e você é meu filho. Também posso afirmar que este exercício discursivo de autonomia paterna — embora, num primeiro momento, tenha me obrigado a recusar a mediação de sua mãe —, hoje, me faz livre para amá-la ainda mais.


quinta-feira, 7 de outubro de 2010

A estrela cadente (ou: da onde eles vêm?)

Caminhávamos no escuro pela estradinha de terra que leva à sede da Fazenda São Rodrigo, na divisa de Minas com São Paulo. Eu e Emiliane. Quando, de repente, vimos juntos uma estrela cadente. Ficamos felizes e eufóricos porque há anos não víamos uma estrela assim tão cintilante. Riscando o céu com sua luz.
A Mi fez um desejo e eu fiz outro, ambos guardados no mais profundo silêncio.

Então fomos dormir, pois já devia ser quase meia-noite e na manhã do dia seguinte, uma quarta-feira de cinzas, voltaríamos de carro para Brasília, onde morávamos. Era o feriado de Carnaval de 2003.

Um mês depois, numa manhã bem cedo de segunda, o teste da farmácia acusava — para nosso espanto — a chegada inesperada do João (ou da Maria, na época).

Passado o choque — ainda contarei nas Intra-uterinas que por pouco não morro eletrocutado com a notícia da gravidez — me ocorreu de perguntar à Mi o que ela havia pedido para a estrelinha, como se eu não soubesse a resposta. Com um sorriso repleto e a mão sobre a barriga, ela me disse tudo.

Pois bem: e o João Pedro nasceu. De um parto natural de 12 horas, forte e desafiando a morte (de que forma? Conto no último capítulo das Intra-uterinas; tchan, tchan, tchan, tchan...).

Por isso, aprendeu desde pequenininho a homenagear a vida. Tomou gosto pelo sol, pela lua e pelas festas de aniversário (igual sua mãe, felizmente). Na celebração de seu aniversário de 4 anos, realizada no maternal da Escola Waldorf de Brasília — Moara, para os íntimos — resolvi contar para ele e seus amiguinhos como realmente tinha sido a sua vinda para a terra (porque a professora comemorava o nascimento das crianças contando uma hestória sobre o planeta de origem dos meninos e meninas; que eu sempre achei meio parecida com a estória do super-homem, ou melhor, de Kal-El, o nome dado por seus pais, que significaria Filho das Estrelas no idioma de Krypton). Resolvi incrementar o conto da professora dizendo que o João Pedro tinha descido do céu escorregando pelo fiozinho de prata que uma estrela cadente deixou.

Escorregou direto para dentro do umbigo de sua mãe. E lá ficou até que um dia eu consegui convencê-lo a sair para me ajudar a encontrar um tesouro enterrado por um velho marujo, chamado “Italiano”, que primeiro me ensinou a mergulhar de olho aberto no mar e depois me deu seu mapa.

Bom, mas eu só estou contando tudo isso porque no dia 4 de outubro, enquanto caminhava com um grande amigo meu aqui de Catanduva, vi outra estrela cadente. Mais de 7 anos se passaram entre aquela que trouxe o João Pedro e essa.

Voltei para casa todo animado e reuni a família para anunciar o ocorrido. Mal acabei de falar e a Mi foi logo me perguntando: “E o que você pediu?”, querendo que eu tivesse pedido para a estrelinha nos trazer uma bela casa, pois ainda não temos uma.

“Nada”, respondi. Não que eu não queira uma casa. É o que mais desejamos no momento. No entanto, acabei me convencendo pelas minhas próprias hestórias que a força das estrelas só pode ser utilizada para trazer crianças do céu. “Mas se nós já temos o João Pedro e o Antônio, o que mais poderia pedir”, tentei me justificar.

A Mi não se conformou. E eu fiquei com a sensação de que deveria ter pedido: afinal, vai que pelo rastro da estrela nos desce mesmo uma casa engraçada?

Contudo, qual não foi nossa alegria quando recebemos hoje pela manhã este cartão do Ricardo e da Márcia, dois grandes amigos de Brasília:

O texto e os desenhos anunciam a boa nova: eles estão esperando bebê!

Ficamos todos muito felizes. Emocionados.

Talvez eu tenha ficado um pouquinho mais, porque tive a honra e o privilégio de ver o momento exato em que o nenê do Ricardo e da Márcia desceu pelo rastro da estrela cadente e entrou definitivamente na vida deles.




Não vou nem desejar felicidade aos novos pais, porque ela pulsa e vibra aí dentro de vocês. Eternamente.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A voz que manda no Manda-chuva não é o Guarda Belo

Ia me esquecendo de contar que da última vez que fomos para São Paulo levei emprestado um GPS.

Liguei o aparelinho e fomos (todos) seguindo aquela voz feminina. Quando a "moça" dizia "vire a direita a 100 metros", eu obedecia. Quando a "moça" mandava trocar de faixa, eu obedecia. E quando a "moça" falava e eu não escutava, pedia silêncio gritando.

Já estava há uns vinte minutos fazendo obedientemente o que aquela voz ordenava, quando o Antônio -- que assistia a tudo intrigadíssimo do banco de trás -- não se conteve e perguntou para sua mãe: "O papai obedece tudo o que a moça fala? Ele faz o que ela manda?"

Não me lembro bem a explicação que a Mi ofereceu a ele. Mas sei que no segundo seguinte lá estava ele repetindo exatamente o que a moça dizia só pelo prazer incomensurável de mandar no manda-chuva do seu pai.

Desde então brinco com ele de seguir-o-mestre (o Antônio é o mestre!) sempre quando quero exigir obediência e disciplina. Primeiro obedeço (e deixo ele se lambuzar um pouquinho), depois mando.

domingo, 3 de outubro de 2010

A individualidade do João Pedro


De vez em quando o João Pedro pega a máquina pra tirar fotos das cenas que ele cria com os playmobis.
Mas essa aí foi tirada por mim, depois de tê-lo ouvido me contar que os dois chefes guerreiros (da frente) eram ele e o Antônio, seu irmão. Quis registrar a parceria entre eles, a amizade dois dois.

Só que o João também se cansa de ser amigo o tempo todo. Porque o Antônio não dá trégua, não larga do pé do irmão e, quase sempre, acaba atrapalhando a brincadeira (na maioria das vezes derruba os hominhos sem querer). E os dois brigam. E, em regra, os repreendemos e então fazemos com que se reconciliem.

Nesse sábado foi diferente. Acordamos tarde como de costume, os dois foram brincar na saleta com o playmobil como de costume e acabaram brigando como de costume, mas ao invés de obrigá-los a fazer às pazes como de costume mandei-os brincar separados em cômodos diferentes da casa. Queria que eles mesmos (sobretudo o João) percebessem que era muito melhor brincarem juntos.

Que nada. Meia hora depois da separação o João Pedro ainda brincava sozinho, empolgado e, aparentemente, com alegria no escritório, enquanto o Antônio já estava envolvido com os afazeres da casa na companhia da mãe.

Intrigado, abri a porta e lhe perguntei se gostaria que eu chamasse o Antônio para participar. Ele disse que não. "Tem certeza?", insiste. "Ãrram", ele respondeu. Não contente, apelei: "Quer que eu brinque com você?". "Não papai, quero ficar sozinho".

Ele não disse "quero brincar", disse "quero ficar" sozinho, o que é muito mais forte.

E assim foi o dia todo. Fomos almoçar na minha irmã e ele ficou sozinho (enquanto o Antônio pintava e bordava com todos nós) assistindo televisão. Na hora de voltar pra casa pediu para ficar mais um pouco na madrinha, mas antes já havia combinado com a avó de ir dormir na casa dela.

Fui buscá-lo às 19h e às 20:30h o levei para casa de minha mãe. Ele foi todo feliz. E eu, por alguns instantes, fiquei um pouco triste por pensar que o Dedé pudesse ter se consado da gente, não só do irmão. Até que me dei conta de que lá se vão os primeiros sete anos de sua vida e que dentro dele já existe um ser humano diferente de "nós".

Fiquei feliz por perceber que longe de nós (do pai, da mãe e do irmão) o João Pedro já não fica mais sozinho. Daqui em diante ele sempre estará com ele mesmo.