quinta-feira, 29 de julho de 2010

Bati no meu filho e meu coração quase secou

Ainda não é esta a postagem sobre a polêmica da proibição da palmada". É quase.

Porque no texto abaixo tento deixar um pouco mais claro meu interesse pelo debate criado em torno da proposta de lei (PL 7.672/2010), que pretende garantir que crianças sejam educadas e cuidadas sem o uso de “castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante”.

Na verdade, já faz alguns anos que me preocupo com o “tema”. Para ser mais preciso desde o dia 19 de julho de 2007 quando bati no João Pedro, então com três anos e meio.


Nesse dia cheguei em casa (do trabalho) em torno das 20 horas e encontrei o João Pedro dormindo. Perguntei para a mãe dele o que havia acontecido e ela me explicou que ele havia entrado no banho lá pelas 18:30h, sem jantar, e ficou brincando na bacia por uns trinta minutos. Quando saiu, pôs roupa e pediu para ver um filme. Deitado no colchãozinho da saleta, não passou do segundo trailer.

Dormiu quase duas horas e meia, e ao acordar disse, fazendo manha, que queria comer bombom sonho de valsa. Como ele estava de férias e eu estava com saudades dele, decidi levá-lo ao supermercado para comprar chocolate.

Entre sair e voltar, levamos uns quarenta minutos.

Conseqüência: às 22 horas o João Pedro estava completamente agitado, falando alto, inventando brincadeiras e formas de chamar a atenção de seus pais cansados.

Quem tem filhos já sabe que esta é uma relação diretamente proporcional: quanto maior o seu cansaço, maior a agitação de seu filho e, portanto, o incômodo que ele causa.

Depois de quase duas horas de muitas broncas (“não faça barulho porque os vizinhos já estão dormindo” ou “porque seu irmãozinho pode acordar”, vale frisar que o Antônio tinha apenas três meses na época), pedidos de silencio e várias ameaças, decidimos ir para cama dormir. Mas o João Pedro disse: “eu quero levar meus hominhos para dormir comigo”.

Eu disse “não” e a mãe disse “sim”. Quando os pais divergem assim são os filhos que deitam e rolam.

Na cama com os brinquedos, a mãe queria contar histórias, o pai queria apagar a luz e o filho queria, é óbvio, ouvir histórias de luz acesa e brincando com seus hominhos.

O pai apagou a luz e a mãe foi buscar uma lanterna. E quem “acendeu”? Não é preciso ler Piaget para saber que o João Pedro ficou completamente aceso.

Passaram-se alguns minutos — para mim, que tentava dormir, uma eternidade — e, então, o Antônio chorou porque queria mamar. O que fez a mãe? Simplesmente disse para um menino com uma lanterna numa mão e um monte de brinquedo na outra que ficasse quieto e que esperasse ela voltar. E foi socorrer o bebê.

Eu, o pai, já sem paciência, dei a última bronca e fiz mais uma ameaça: fica quieto e dorme ou então vai dormir lá no quartinho dos fundos (escrevendo agora a ameaça parece ainda pior).

O João Pedro deu de ombros, se levantou e foi para o outro quarto atrás de sua mãe.

Bom, é preciso dizer que nessa época eu e o João estávamos dormindo no quarto de casal, na mesma cama, enquanto o Antônio e a Emiliane dormiam no quarto dos meninos para que a amamentação e as trocas de frauda não atrapalhassem a todos.

Quando eu começava a pegar no sono, ouvi barulhos fortes semelhantes a pancadas no chão: era o João Pedro com sua lanterna caminhando pela casa com seu tênis de solado duro.

Foi a gota d’água.

Peguei o João pelo braço — aí ele começou a chorar alto —, tirei seu tênis, joguei-o na cama e disse bravo com o dedo em riste: “fica quieto moleque se não quiser apanhar!” Ele, chorando ainda mais alto, começou a gritar pela mãe. Dei dois tapões na bunda dele e então entrou a mãe no quarto para resgatá-lo das minhas terríveis garras. Sem exagero, no segundo seguinte já me sentia um monstro.

E para agravar ainda mais minha derrota, a Emiliane me diz que ela é quem tinha deixado ele andar pela casa para depois ir dormir com ela.

Fiquei arrasado, me sentindo um covarde, um desses marmanjões que batem nos pequenos. Mas o que mais me doía era imaginar o que o João Pedro pudesse estar sentindo naquela hora.

Nunca saberei o que se passou pela cabeça do João Pedro, mas estou certo que sua “estrutura mental”, ou melhor, sua maturidade intelectual o levou a fazer as melhores escolhas. Pois na manhã do outro dia, aconteceu o seguinte: me sentindo um pouco menos humano, um pouco envergonhado e muito frustrado, tomei café em silêncio e antes que o João Pedro, o Antônio e a Mi se acomodassem à mesa fui me esconder no chuveiro. Enquanto me banhava, o João Pedro quis fazer cocô. Abri a cortina do banho para me enxugar e ele me abriu um sorrisão meio forçado como ele sempre faz para se desculpar.

Sem saber o que dizer e o que fazer, disse apenas: “filho dá licença para o papai passar”.

Coloquei meu “uniforme” e fui saindo discretamente; lá da porta anunciei: “tchau Mi, tchau Antonio, tchau João”.

Da saleta onde brincava o João Pedro gritou: “Papai, papai, você tá esquecendo uma coisa?”

Voltei e o encontrei no corredorzinho do apartamento, exatamente onde nasceu o Antônio, de braços abertos para me dizer em seguida: “você tava esquecendo o meu abraço e o meu beijo”. Ele se atirou em meus braços e me deu um beijo apertado. E eu finalmente aprendi.



Aprendi enfim que quem bate em criança comete duas violências a um só tempo: uma contra a criança, evidentemente, e outra contra si mesmo. Quando eu era pequeno ouvia os adultos dizerem que “quando a criança bate na mãe, a mão seca”; hoje, sei que quando o pai bate no filho é seu coração que seca.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Filhosofando com... Jean Piaget

Piaget teve três filhos e refletia constantemente sobre tudo o que faziam; dizem que ele acompanhou minuciosamente como pai e como pesquisador o desenvolvimento de seus filhos.

Como ando preocupado com a polêmica em torno da "proibição da palmada" na educação de crianças, andei revisando as idéias de Piaget sobre a psicogênese, sua descrição dos estágios de desenvolvimento moral das crianças e seu entendimento sobre a educação (embora o pesquisador suíço nunca tenho feito pedagogia em sentido estrito). Encontrei a seguinte reflexão no seu livro O julgamento moral da criança:

A sociedade é o conjunto das relações sociais. Ora, entre estas, podem ser distinguidos dois tipos extremos: as relações coercitivas, cuja particularidade é impor do exterior, ao indivíduo, um sistema de regras com um conteúdo obrigatório; e as relações de cooperação, cuja essência é fazer nascer, no interior mesmo dos espíritos, a consciência das normas que comandam todas as regras.

Talvez tenha ficado um pouco vaga demais a lição contida no texto. Na próxima postagem sobre "bater para educar" tudo ficará mais claro.

domingo, 18 de julho de 2010

O lado bom das coisas aparece sempre no final

Para encerrar minhas férias (embora as escolares continuem), eu e os meninos decidimos ampliar o galinheiro da chácara do vovô e dobrar nosso bando: compramos mais duas franguinhas e juntamos com o galo e a galinha que já estão lá.
Os meninos se empolgaram muito com a criação depois que a galinha começou a botar todos os dias. E agora o Chaves, o galo caipira de estimação do João, é apenas uma bela lembrança (conto noutra ocasião como ele foi comido pelo Nero, o cachorro, e como lidamos com a perda violenta).
Eles me ajudaram a esticar a tela, selecionar as ripas, rastelar o terreno e a aterrar uma casinha para os pintos recém-nascidos, que logo virão. Depois a brincadeira foi ficando séria demais e eles foram para a beira do laguinho fazer coisa de criança.
Com o bambu de apanhar abacate o João Pedro começou a bater na superfície d'água para molhar o Antônio. Molhou muito e o Antônio fez cara de choro. Rapidamente, tentando evitar minha intervenção, o João passou a vara para as mãos do irmão e o estimluou a fazer o mesmo. O Antônio topou e começou a golpear a água. De longe pedi que parassem (porque estava frio, não tínhamos outras roupas secas e queria acabar o trabalho).
Não deu tempo: Antônio se desequilibrou e caiu, pela segunda vez, dentro do lago. Caiu e saiu num segundo, porque o laguinho é raso e o João o ajudou. 
Assustado o Antônio me chamou choroso. O João, sentindo-se responsável e acho que um pouco ameaçado com minha aproximação, tomou a iniciativa de tirar sua camiseta para enxugar o irmão e tentando confortá-lo disse: "Neném, a vida é assim mesmo: as vezes a gente cai".
Fiquei encantado com o conjunto da cena. Claro que a frase não é dele: provavelmente reproduziu algo semelhante que [me] ouviu dizer. Mas os gestos que ele produziu foram de uma autenticidade muito peculiar. "Esse é o João", pensei satisfeito.
Em silêncio os levei para o banheiro e lá os repreendi dizendo que na chácara ou na fazenda do tio Betão só peço para eles pararem de fazer alguma coisa quando existe um perigo, um perigo de verdade. Por isso, é preciso obedecer na hora.
Ficamos os três em silêncio esperando os pensamentos assentarem.
Ainda calados peguei o Antônio no colo e fui para o carro. O João veio logo atrás.
Atei o cinto do Antônio e quando fui ajustar o do João entendi que ele evitava meus olhos.
Levantei seu rosto e lhe disse que estava orgulhoso porque ele havia ajudado seu irmão.
Chegando em casa o Antônio foi correndo contar à mãe que tinha caído de novo no lago. "E sabe o que o João Pedro fez?", apartei. Por um instante tenho certeza que o João pensou que eu repetiria a advertência. Mas eu disse: "Ajudou o irmão a sair da água, a tirar a roupa encharcada e, ainda, usou sua própria camiseta para secá-lo".
A mãe comemorou e ele até ficou encabulado.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Classificação indica-ativa - "Pro dia nascer feliz" de João Jardim

“Pro dia nascer feliz” de João Jardim é um daqueles filmes-documentários que faz a gente refletir um bocado sobre o nosso país. O melhor é que ele bota pra pensar sem aborrecer; não é um filme enigmático e sinuoso que quando acaba não sabemos ainda se gostamos.
É mesmo gostoso de assistir. Embora seja tão claro e contundente quanto o são as desigualdades que documenta.
O filme aborda a relação de adolescentes com suas escolas: de um lado o pobre Brasil das escolas públicas e, do outro, o Brasil rico das escolas particulares de São Paulo.
Diante de tantas diferenças e de tragédias iminentes, até dá para passar despercebido o depoimento de uma garota rica — aluna do Colégio Santa Cruz de São Paulo —, que vivencia dificuldades na conclusão do ano letivo (não tem média para aprovação e, por isso, depende da decisão do conselho de classe). Num desabafo, a adolescente responsabiliza seu pai, em especial, por parte das confusões e das incertezas que ela experimenta. Revela que se sente enganada (não me lembro se ela usa essa palavra) por ter descoberto que seu pai era ateu, embora tivesse estudado, como ela, no tradicional colégio católico. “Como seu pai pôde fazer com que ela passasse “a vida inteira” (ela deve ter uns 16 anos) acreditando num Deus que para ele não existe?”, é a indagação da adolescente e o mote deste texto.
Não é preciso ser a Maria Rita Kehl ou a Rosely Sahão para perceber que há mais coisas entre um pai e uma filha do que a lente e a poesia de João Jardim poderiam revelar. Mas só mesmo psicólogas tarimbadas para avançar por esses desvãos de nossa existência. Eu paro por aqui.
Na verdade, daqui pra frente, sigo por outro caminho. Quis apenas aproveitar uma passagem singela de um filme profundamente singular como ensejo para explicar aos meus filhos que o importante é ser “do bem”, é ser capaz de amar até quem não te ama, tão somente porque isso faz — e nos faz — bem; independentemente do que diz essa ou aquela religião. Afinal, o que é melhor ensinar aos nossos filhos: ajudem aos injustiçados porque devemos repudiar a injustiça e a desigualdade ou ajudem-nos porque assim o Criador os recompensará (ou punirá por não ajudar) [A Emiliane diz que as opções não são excludentes; para ela a crença em Deus amplia as nossas possibilidades. Como me refiro aos nossos filhos, fica registrada a opinião equilibrada da mãe].
Mesmo tendo certeza que meus filhos receberão uma educação muito melhor do que o resto do mundo — todo pai acredita nisso — e, por isso, nunca terão motivos para que se sintam enganados nem por mim e muito menos por minha esposa, é bom botar os pingos nos “is” de uma vez por todas.
Vejam bem, não estou aqui para promover o ateísmo. O texto não quer estimular ninguém a ser ateu. Até porque se hoje, como pai, eu pudesse escolher, certamente preferiria acreditar que a morte é apenas “a” passagem para o Reino de Deus. E quem não gostaria de crer na “comunhão dos mortos”? Quem em sã consciência não escolheria o conforto da crença no reencontro com seus filhos depois da morte?
Saber que a morte acaba com tudo o que somos é a maior desvantagem de ser ateu. Mas justamente por reconhecer essa desvantagem me sinto obrigado a sustentar que não há mal nenhum em não acreditar em Deus. Muito antes pelo contrário, sinceramente acredito que os ateus são mais propensos a fazerem o bem, porque eles sabem que se não fizerem, “Ninguém” o fará por eles.
Também não quero e não posso generalizar: embora eu não conheça nenhum, deve ter um bocado de ateu ruim, que não está nem aí para os outros. Mas basta abrir a janela para ver que, atualmente, não é a falta de fé que tem promovido matanças e sofrimentos no mundo, mas, digamos, o excesso.
Agora, se o ateu possui uma imensa desvantagem por não viver a doce ilusão da vida depois da morte, por outro lado tem uma vantagem igualmente relevante em relação aos demais seres humanos. Diria até uma vantagem moral e profissional em relação aos crentes: é que um ateu não consegue, ainda que queira, fazer “carreira política” no Brasil. Neste país em que a esmagadora (e põe esmagadora nisso) maioria da população acredita em Deus, ser ateu é ser “a toa”, isto é, alguém que não merece confiança. Sequer um voto.
            Num artigo publicado no Estadão, há uns três anos mais ou menos, Sam Harris, um historiador norte-americano ateu, afirmava que nos “EUA ser ateu virou um total impedimento para a carreira política”. Fernando Henrique Cardoso precisou perder em 1985 a prefeitura de São Paulo para Jânio Quadros, depois de declarar-se ateu num debate na tevê, para descobrir que por aqui também se aplica o impedimento. Para virar presidente não sabemos se deixou de ser ateu ou se deixou de lado os escrúpulos que tinha.
Esse mesmo autor, nesse mesmo artigo, relacionava contra-argumentos e razões de sobra para refutar a idéia generalizada de que um ateu é um ser humano diminuído ou uma pessoa sem fé. Vale a pena conferir aqueles que me parecem principais:
Os ateus não vêem sentido na vida
Pelo contrário: são os religiosos que se preocupam freqüentemente com a falta de sentido da vida e imaginam que ela só pode ser redimida pela promessa da felicidade eterna no além. Os ateus tendem a ser bastante seguros quanto o valor da vida. A vida é imbuída de sentido ao ser vivida de modo real e completo. Nossas relações com aqueles que amamos têm sentido agora; não precisam durar para sempre para tê-lo.
Os ateus são arrogantes
Quando cientistas não sabem alguma coisa, eles admitem. Na ciência, fingir saber o que não se sabe é falha grave. Mas isso é o sangue vital da religião. Uma das ironias do discurso religioso é a freqüência com que as pessoas de fé se vangloriam de sua humildade e, ao mesmo tempo, alegam saber fatos sobre cosmologia, química e biologia que nenhum cientista conhece. Quando consideram questões sobre a natureza do cosmos, ateus tendem a buscar suas opiniões na ciência. Isso não é arrogância. É honestidade intelectual.
Os ateus são fechados à espiritualidade
Nada impede os ateus de experimentarem o amor, o êxtase e o temor.
Os ateus não têm moral
Contra essa acusação de que os ateus são amorais, juro, não me lembro exatamente da resposta que o historiador deu; mas me recordo que não era muito polida. Já que submeter a moral à religião é uma redução violenta e grosseira.
            Por tudo isso quero que meus filhos tenham plena convicção de que não há mal nenhum em ser ateu. O que importa é fazer o bem para as pessoas que amamos e também para aquelas que (ainda) não amamos. O fundamental é ter fé na capacidade humana de atribuir sentidos à vida em sociedade e construir nossa própria história.
E se tiverem dúvidas sobre qual o caminho a seguir, espero que meus filhos conversem com as outras pessoas, consultem os livros, vejam os filmes (“Pro dia nascer feliz”, é uma bela sugestão), verifiquem o que dizem as leis (sobretudo a Constituição) e, então, sigam felizes, porque, afinal, o caminho certo não existe, somos nós que o fazemos enquanto caminhamos.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Intra-uterinas (memórias de fora pra dentro da barriga)

            Na conversa anterior lhe ofereci uma música de boas vindas para que você possa ir se acostumando com a idéia da passagem do útero para o mundo. Dizem que não há lugar melhor para se viver do que a barriga da mãe. Os psicanalistas chegam a descrever até uma espécie de trauma do nascimento. É claro que não tenho lembranças dos nove meses em que permaneci no ventre de sua avó, mas a julgar pela ligação que temos com as nossas mães não tenho dúvidas de que deve se tratar de um excelente lugar (um pouco apertadinho talvez: fiquei impressionado com uma ultra-sonografia especial pendurada feito um quadro na parede da clínica em que fizemos sua segunda ecografia — quando vimos seu coraçãozinho piscar na tela —, nela aparece um bebê, já pronto para nascer, tão comprimido pelo espaço que as canelas ficavam juntas de suas orelhas tal qual se vê em exibições de contorcionismo).
            Tudo bem que nosso mundo não é dos melhores — você sempre ouvirá dos mais velhos que o mundo, antigamente, era muito melhor —, mas para quem nasce no seio de uma família de classe média como a sua tudo lhe parecerá muito bom. Infelizmente, tenho que lhe dizer que há muitas crianças neste mundo pauperizado, neste nosso país miserável, que se conseguirem sair sãs e salvas do ventre de suas mães dificilmente chegam ao primeiro aniversário. Mas, não devo lhe falar de tristezas agora, senão corremos o risco de você não querer sair.
            Pode vir, pode chegar que do lado de cá você encontrará muito amor, muito carinho e uma porção de coisas lindas para fazer.
            De uma coisa você pode estar certo meu filho: todos nós, seus pais, seus avós, seus tios e tias, seus primos e primas, que já lhe amamos assim em pensamento, do momento em que sua vinda foi confirmada, passamos a nos esforçar muito mais para transformar este mundo num lugar digno de acolhê-lo.
            Sua chegada fortifica nossa crença de que podemos mudar o mundo, de que a vida pode ser ainda melhor para todos, sem distinções de cor, credo, sexo ou classe. Daqui em diante, você é o sentido maior pelo qual continuamos lutando contra as injustiças, contra todas as iniqüidades.
            Acho que é por isso que desde manhã estou cantando uma música que há anos não cantava com tanto gosto (sempre gostei de cantar desde muito pequenininho, mas atualmente tenho cantado muito, muito mais porque, é claro, você me inspira). A canção é assim:
Você lembra, lembra naquele tempo eu tinha estrelas nos olhos e um jeito de herói era mais forte e veloz que qualquer mocinho de caubói.
Você lembra, lembra eu costumava andar bem mais de mil léguas para poder buscar flores de maio azuis e os seus cabelos enfeitar.

Escrito em 24 de maio de 2003

"Por que Deus mandou matar as crianças [no Egito]?"

Foi a pergunta que o João Pedro me fez quando lhe contei sobre a Páscoa, no feriado deste ano (como expliquei na postagem anterior).

Respondi a ele que Deus era muito bravo, impaciente e excessivamente severo antes do nascimento de seu filho. Ele, as vezes, fazia coisas que ninguém entendia, por exemplo essa barbaridade de mandar matar crianças inocentes.

Mas tentei tranquilizá-lo dizendo que depois do nascimento de Jesus tudo mudou. Deus se deu conta que tinha de dar bons exemplos para seu filho e, assim, foi se transformando numa pessoa melhor.

Aí contei pra o João Pedro uma das muitas besteiras que fiz antes de ser pai para que ele mesmo concluísse que eu também tinha melhorado por sua causa.

Dia seguinte, quando fui relatar pra minha esposa a conversa com o João, veio a dúvida: será que sugeri a ele que eu também mandei matar crianças? Pior: sugeri que sou infalível porque agora sou pai? Acho que não, pelo menos é o que indicam esses últimos meses de convivências; mas na Páscoa de 2011 creio que verifico.

Feriado mineiro de 9 de julho

Costumo contar para os meninos o porquê de cada feriado. Principalmente os feriados pátrios e os religiosos (na verdade, apenas alguns religiosos). Mais do que oferecer um sentido grandioso para um dia sem aula (sem babá, mas com pai e mãe em casa), tento vinculá-los à História do Brasil e ao processo civilizatório de superação das desigualdades e das injustiças que esta história (com "H") representa, ou melhor, que conscientemente faço com que represente (ok, estou assumindo os riscos).

Na maioria das vezes, tento criar um relato a partir de uma perspectiva mais próxima a deles, de uma criança. Por exemplo, no feriado de Páscoa contei que nessa data a gente comemorava a coragem de um menino que, depois de ver seus pais sofrerem e seu irmão mais velho morrer, resolve se juntar a outras pessoas numa grande viagem em busca de uma terra melhor pra viver. Falo dos Hebreus, do Faraó e do Anjo de Deus que aniquilou os primogênitos, mas sempre sublinhando a bravura do menino que foi capaz de deixar seus brinquedos e sua casa. Eles gostaram, embora o João Pedro tenha ficado particularmente impressionado com o anjo enviado para exterminar os filhos mais velhos: "Por que Deus mandou matar as crianças?", questionou.

Todavia, com esse feriado de 9 de julho, na sexta, foi diferente. Não me senti muito motivado a criar estória alguma. Principalmente por achar que a memória da Revolução de 1932 tem sido evocada para justificar o que há de pior nos paulistas: nossa arrogância segregacionista, nosso sentimento de superioridade em relação ao "resto" do país.

Certamente há valores diluídos nesse episódio histórico que poderiam muito bem compor uma bela estória em reforço à nossa condição de brasileiros. Mas como não os encontrei há tempo, por segurança, fomos todos passar o feriadão (e dar início às férias familiares de julho) em Minas Gerais, onde o Brasil encontra sua síntese mais perfeita.

Foto da "fronteira" de São Paulo com o Brasil das Minas Gerais


Foto da Igreja de Ns. Senhora do Rosário de 1852 da vila de Dores do Aterrado (atual Ibiraci/MG)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Filhosofia de vida ou religião?

Ontem, quarta-feira, no prédio onde moramos fizemos uma “hamburgada” para as crianças. É a segunda vez que realizamos essa espécie de festa na churrasqueira reunindo umas 15 crianças, uns 3 adolescentes e uns 10 adultos. Grelhamos os hambúrgueres, preparamos os pães e, de sobra, nos divertimos um bocado. A meninada brinca e a gente congrega parte da vizinhança.
É daquelas coisas na vida que a gente investe pouco tempo e pouco dinheiro para ganhar um montão de felicidade, um bocado de razões pra viver.
Por essas e outras que fico pensando se esse amor incondicional que sentimos pelos nossos filhos é apenas filhosofia de vida (um modo de viver) ou, de fato, é a mais profunda forma de religião (um modo de me religar comigo mesmo por meio do outro, que é meu filho).
Evidentemente, não estou falando dessa religião com igrejas, templos, ritos, dízimos, passes, despachos, pastor, ovelhas, leitoas, quermesses e toda sorte de bugigangas institucionais. Isso não tem nada a ver com o amor pelos filhos que, diga-se de passagem, é muito superior a qualquer fé em Deus, em qualquer deus. Ou alguém em sã consciência teria coragem de matar o próprio filho para demonstrar obediência (amor?) a Deus? O sacrifício de Isaac há tempos já não serve de exemplo para nenhum cristão de verdade; a tentativa de homicídio praticada por Abraão contra seu único filho tem prestado apenas para desqualificar o Antigo Testamento (e Saramago o faz com fina ironia em seu livro Caim) e ara expor suas vergonhas. Mas também não é o que vem ao caso aqui.
Quero somente ressaltar o quanto dependemos de nossos filhos para nos manter ligados à vida, para acreditar que vale a pena viver. Religião nesse sentido. É tão profunda essa dependência existencial que não há palavra que designe (ou que admita) o seu término. Explico com dois exemplos. Se perdemos esposa ou marido ficamos “viúvo”, essa é a palavra para designar a condição de “sem marido ou sem esposa”. Se perdemos nossos pais ficamos “órfãos”, isto é, “sem pai e/ou mãe”. Agora se perdemos nossos filhos não há (ou ignoro completamente) uma expressão em língua portuguesa que caracterize essa situação de “sem filhos”.
Desconfio que não há palavra alguma que designe a condição do pai que perde o filho, porque quem perde o filho perde por conseqüência a ligação com sua própria existência, perde portanto a capacidade de se religar à vida, enfim, fica morto. Talvez seja essa a única palavra disponível. Morto, ainda que chore por muitos anos.
Talvez não seja só filhosofias...

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Aprender a tocar violão e ensinar a dedilhar o português

O João Pedro, já posso dizer, possui domínio completo da língua portuguesa. Não estou exagerando. Ele já concorda palavras e tempos verbais com desenvoltura e, até, com alguma sofisticação para sua idade (6). Entende as regularidades da lingua e algumas irregularidades. Pena que não me recordo agora de nenhuma frase exemplar que ilustre esse domínio, vou começar a fazer uns apontamentos daqui em diante. Mas hoje, enquanto brincávamos com seus hominhos, ele mandou um "papai, [algo] não coube ali" que fiquei satisfeito, orgulhoso e, finalmente, decidido em deixá-lo aprender violão com um professor jovem, que na aula de apresentação não conseguiu fazer o plural de "escala musical".
Já me acostumei com o "tipo assim" e outros penduricalhos que enfeiam a prosa da moçada, nem me sinto mais ofendido quando ouço. Mas me incomoda muito quando as pessoas comem os "ésses". Tão simples, uma letrinha só na maioria dos casos.
Talvez seja um pouco de implicância minha e, quem sabe, expressão de um certo trauma. É que quando tinha uns 15 anos fiz o discurso de formatura do 1º Grau; ao fim fui efusivamente cumprimentado pelos meus familiares, mas meu tio-avô me disse: "teria ficado muito melhor se você tivesse dito corretamente o plural de todas as palavras de seu texto". Faz mais de 20 anos e me recordo com precisão da advertência.

Meu Tio Miguel ficaria bem impressionado (e creio que feliz) com o português do João.

Pois é, acho que amanhã vou dizer a ele que um aluno também pode (e deve) ensinar o professor, vou contar alguma história em que realmente fui ensinado por um de meus alunos e, por fim, vou sugerir a ele que ensine o professor a desenhar caveiras assustadoras (nós achamos a caveira que acompanha o nome da banda do professor muito simpática para uma caveira de verdade) e dizer o plural das palavras.

domingo, 4 de julho de 2010

Amor por um e por outro filho

Hoje, enquanto observava o Antônio e o João Pedro brincando juntos com o playmobil debaixo da televisão (igualzinho eu ficava quando criança com meu pai tentando assistir o telejornal), lembrei-me que nos dois primeiros meses de vida do Antônio eu olhava para ele -- feinho de dar dó -- e olhava para o João sem acreditar que um dia pudesse amar o segundo tanto quanto amava o primeiro filho.

Quanta ingenuidade, pois não só amo o Antônio muito mais do que amava o João naquela época, como esse amor pelo segundo me faz amar ainda mais meu primeiro.

sábado, 3 de julho de 2010

Intra-uterinas (memórias de fora pra dentro da barriga)

            Sua mãe e seu pai começamos a namorar em 1993, no final do ano. Antes, em julho deste mesmo ano demos nosso primeiro beijo: ainda hoje, quando me lembro da noite em que enlacei sua mãe nos braços e toquei sua boca com os meus lábios, sinto um friozinho na barriga (típico das grandes paixões; não tenho dúvidas de que você viverá muitos “friozinhos”).
            Portanto, você nascerá como a consagração de 10 anos de convivência. Você dispõe de um solo, de um amor tão firme quanto fértil para crescer. Nós acreditamos que você “vingou” no ventre de sua mãe porque a semente (você: as vezes lhe chamo de “carrapicho” tamanha sua capacidade de vingar) é boa e a terra (nosso amor) é venturosa.
            Em dezembro teremos motivos de sobra para comemorar sua chegada.
            Venha, meu filho, venha conhecer a vida!
            Estou me lembrando de uma música que hoje à noite, quando chegar do trabalho, vou cantar para você: "Boas-vindas" do Caetano Veloso (http://www.youtube.com/watch?v=BcLPv32CkRk&feature=player_embedded).

Escrito em 22 de maio de 2003

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Nossas histórinhas - Pai com gosto ruim

Quando o Antônio tinha uns 4 meses e nenhum dente, entrou naquela fase de levar tudo à sua boca.

A mão à boca não era novidade alguma porque desde sua fase intra-uterina conseguíamos vê-lo chupando o dedo. Até ficamos preocupados que isso pudesse afetar a formação de seu palato e etecétera e tal; preocupações típicas de pais informados (se bem informados, é outra questão).

Todavia, começou a colocar a mão da gente na sua própria boca.

Um dia cheguei e, por cautela, lavei as mãos para brincar com ele. Aí o Antônio, ainda no berço, esticou os bracinhos, segurou minhas mãos e colocou a esquerda em sua boca.

E fez uma cara de gosto ruim.